Não era diferente no século XVI, nos dias da Reforma. Boas ações, ou boas obras, eram prescritas e regulamentadas pela Igreja. Incontáveis eram as leis, os rituais, as peregrinações, os jejuns, etc. A motivação era o medo do inferno e o desejo de conquistar um lugar no paraíso. Para satisfazer estas inquietações, a Igreja Romana tinha elaborado no decorrer dos séculos um sistema complexo, funcional e muito lucrativo. Vendia-se missas e indulgências. Oferecia-se relíquias e peregrinações. Negociava-se, como concessão, bispados e arcebispados onde pessoas, com pouca ou nenhuma formação teológica, dedicavam-se a explorar estas coisas.
Por isso, a doutrina luterana da Justificação pela Fé não era apenas mais um dogma religioso, e sim algo que colocava em xeque todo este sistema. A difusão das ideias de Lutero não causava apenas um “problema” religioso, mas também econômico.
Não tardou para que o Reformador fosse acusado de ter “abolido as boas obras”. Para os adversários da Reforma, o Sola Fide era uma ideia caótica. Se as boas obras não eram necessárias para a salvação e não concediam méritos, por que as pessoas as praticariam? Lutero resalta que, de tudo o que ele ensinava, “a maior das questões foi levantada justamente em torno das boas obras” .
No ano de 1520, cumprindo promessa feita de escrever algo sobre o assunto, Lutero publica o pequeno livro “Das Boas Obras”, dedicado a João da Saxônia, irmão do eleitor Frederico, o Sábio. Este escrito é a resposta de Lutero a crítica de que o ensino evangélico teria como consequência o relaxamento moral da sociedade. Nele, Lutero argumenta que embora as Boas Obras não sejam necessárias para a salvação, elas são uma consequência natural da fé e estão sempre ligadas a ela. Por isso, onde há a fé também existirão as verdadeiras “boas obras”.
Nesta, que Lutero considerou sua melhor obra até então, ele expõe um resumo da vida cristã a partir da fé, coerente com a verdade bíblica da Justificação pela Fé somente. Por isso Lutero coloca a fé como a primeira e mais importante obra, pois é obra divina em nós, e salienta que todas as outras são realizadas a partir dela. É a fé que torna as boas obras agradáveis a Deus e por isso elas devem ser feitas em fé. Disto resulta que toda ação feita na dúvida sobre se agrada a Deus não passa de pecado:
“Todas estas obras acontecem fora da fé. Por isso nada são e estão completamente mortas” .
“Se não há confiança ou existe dúvida de que a obra agrada a Deus, então a obra não é boa” .
Não há a necessidade portanto de a igreja preocupar-se em legislar ou estabelecer novas obras. Só o primeiro mandamento já exige mais do que poderíamos realizar. “Portanto, um cristão que vive nessa fé não precisa de um mestre de boas obras. Mas ele faz aquilo que lhe é apresentado, e está tudo bem feito... ” Na verdade, “a fé precisa ser mestre de obras e capitão em todas as obras, ou então elas nada serão” .
A consequência de toda esta reflexão é que está desfeito o conceito de obras meritórias. As boas ações não são praticadas para se obter de Deus algum benefício, mas o cristão “serve a Deus de forma puramente gratuita, satisfeito em agradar a Deus” .
Por tratar de um problema fruto da natureza humana, que é sempre a mesma, o escrito “Das Boas Obras” continua atualíssimo. Mais do que nunca, em nossos dias, grande parte das pessoas procuram se relacionar com Deus tendo como ponto de partida suas próprias ações em detrimento da ações de Deus por ela.
Mesmo dentro da Igreja Luterana não é rara a tentativa de julgar o relacionamento de um cristão com Deus baseando-se nas suas ações dentro da estrutura da igreja. Cristão verdadeiro e consagrado, para muitos, é aquele que se envolve em comissões e departamentos, que exerce liderança e participa de reuniões.
Também nós criamos nossas leis, nossas obras prediletas, e somos tentados a classificar os irmãos baseados nestas leis.
O escrito luterano em pauta é atualíssimo porque nos ajuda a não cairmos neste erro. Exalta entre nós a vida comum, vivida na fé, alimentada pela Palavra e Sacramentos, que faz o que agrada a Deus no lugar e no momento em que está, com o que lhe é apresentado.
Alguns pastores costumam dizer corretamente que o culto a Deus não é concluído no término do culto dominical. Mas continua ao sairmos da igreja, em nosso relacionamento com as pessoas que nos cercam e com nossa família. E este “serviço” é infinitamente menor do que o grande serviço realizado por Cristo a nós quando realizou a nossa salvação. Portanto, não há sentido em classificar os irmãos, afinal, mesmo nossas “grandes obras” não se comparam com aquela que Cristo realizou igualmente para todos.
Em uma Escola Cristã, “Das Boas Obras” também encontra seu lugar. Visto que nela direcionamos os jovens em suas vocações, é fundamental reforçar que justamente nestas vocações eles terão a oportunidade de servir o Senhor do Universo, se estiverem na fé. E ao adentrar um mercado de trabalho voraz e competitivo, terão a oportunidade de lembrar que no projeto de Deus, exercer a vocação é um direito de todos, e que pela fé, Deus se agrada de cada ato exercido dentro dela.
O escrito “Das Boas Obras” integra o volume dois das Obras Selecionadas de Lutero em português. Devido a sua importância e atualidade, foi reimpresso como livro separado e está disponível em português sob o título “Ética Cristã”. Está a disposição da sociedade para que as pessoas aprendam um cristianismo bíblico que, dentro de muitos círculos, ainda é uma desconhecida novidade. Está aí para quebrar conceitos e paradigmas, para exaltar a fé e mostrar ao mundo que Deus, em Cristo, nos ama como somos e aceita nossas ações, feitas na fé, como um perfume suave dedicado a ele.
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